RESUMO
Uma dupla vulnerabilidade, doença e incapacidade para o trabalho: essa é a condição que deverá ser verificada pelos médicos peritos da Previdência Social entre os que solicitam o benefício auxílio-doença. Em uma sociedade organizada em torno da produção e consumo de bens, a ausência de rendimentos quase sempre significa o rebaixamento social e a privação. No contexto previdenciário, o ato médico ocorre sem que a conduta esteja voltada para o restabelecimento da saúde, tratamento ou prevenção do adoecimento, mas a ausência do compromisso assistencial seria suficiente para prescindirmos do exame moral dessa interface? Este artigo desenvolve o argumento de que a atividade médico-pericial de controle sobre a entrada e/ou permanência em auxílio-doença envolve um tipo específico de risco que decorre da singularidade da tarefa de controle. Nesta o compromisso com o paciente, ou pessoa em sofrimento, típico da medicina, é deslocado em decorrência da necessidade de controle do acesso ao benefício. Entre a beneficência para com o demandante e o interesse coletivo de preservar recursos pela observância estrita do regramento previdenciário, há um espaço discricionário preenchido pela atividade médica, o espaço de arriscar-se, de tensionamento e, por vezes, de disfunções. A especialização em reconhecer a incapacidade laborativa é moralmente conflitiva. A reflexão ativa e o julgamento consciencioso não eliminam o risco moral, mas tornam mais evidentes as condições de sua emergência e a necessidade de considerá-lo seriamente ao lidar com essas práticas de controle sobre a população...
Double vulnerability, disease and work disability: this condition must be verified by medical experts in the Brazilian Social Security system among those applying for sick leave benefits. In a society organized around the production and consumption of goods, lack of income often means downward social class mobility and social deprivation. In the context of Social Security, medical activity is not focused on health restoration, treatment or prevention of disease. However, would be the lack of focus on health care assistance an argument strong enough to ignore the moral exam of this patient-physician interface? Thus, this paper argues that the expert medical activity over the entry or stay on sick leave benefits involves a specific type of risk arising from the singularity of the control task. This commitment to the patient, typical of medicine, is shifted due the need to control access to benefit. Between beneficence towards the plaintiff and the collective interest of preserving resources for strict observance of pension rules, there is a discretionary space filled by medical activity, the space venture, tensioning and sometimes of malfunctions. Medical expertise in recognizing incapacity to work is morally conflictive. The active reflection and fair judgment do not eliminate the moral conflict, but the conditions of its emergence become more obvious as well as the need to consider moral conflicts seriously when dealing with these control practices over the population...
Assuntos
Humanos , Ética Médica , Princípios Morais , Prova Pericial/ética , Assunção de Riscos , Relações Médico-Paciente/ética , Previdência Social , Brasil/etnologia , Política Pública , Controle Social FormalRESUMO
Este artigo apresenta e discute resultados de pesquisa qualitativa sobre a relação médico-paciente na perícia médica da Previdência Social. A pesquisa analisou amostra (n=79) de registros da Ouvidoria da Previdência Social contendo reclamações sobre o trabalho médico pericial. A relação médico-paciente, no campo previdenciário, realiza-se por meio de um ajustamento à norma, um deslocamento no espaço terapêutico médico-paciente, instrumento da operação de controle para acesso aos benefícios por incapacidade. As disfunções nessa interface de controle seriam resultantes da prática desses limites, da forma em que estes estão colocados. A seguridade social foi compreendida como biopolítica e a atividade médico-pericial como expressão de biopoder, nos termos da filosofia política de Michel Foucault. Discutir Previdência significa clarificar seus pressupostos de segurança e não desconhecer o caráter instrumental que as práticas médicas assumem em seus engendramentos securitários.
Este artículo presenta y discute resultados de la encuesta cualitativa sobre la relación médico-paciente en la pericia médica de la Seguridad Social. La encuesta analizó una muestra (n=79) de registros de la Defensoría de la Seguridad Social, conteniendo reclamaciones sobre el trabajo médico de pericia. La relación médico-paciente, en el campo de la previsión social, se realiza por medio de un ajuste a la norma, un desplazamiento en el espacio terapéutico médico-paciente, instrumento de la operación de control para acceso a los beneficios por discapacidad. Las disfunciones en esa interfaz de control resultarían de la práctica de esos límites, de la forma en que ellos están colocados. La seguridad social fue entendida como biopolítica y la actividad médico-pericial como expresión de biopoder, en los términos de la filosofía política de Michel Foucault. Discutir la Seguridad social significa aclarar sus supuestos de seguridad y no desconocer el carácter instrumental que las prácticas médicas asumen en sus engendramientos de seguridad.
This article presents and discusses results from qualitative research on the physician-patient relationship within medical expert advice for the Brazilian social security system. The study evaluated a sample (n = 79) of records at the Social Security Ombudsmans Office, containing complaints about medical expert advisory work. The physician-patient relationship within the field of social security comprises adjustment to standards that turns the physician-patient therapeutic space into an instrument to put controls for accessing disability benefits into operation. Dysfunctions at this interface might result from the way in which the limits are implemented. Social security was taken to be biopolitics and medical expert activity to be an expression of biopower, in terms of the political philosophy of Michel Foucault. Discussing social security means clarifying its security assumptions and not ignoring the instrumental nature engendered by social security medical practices.
Assuntos
Humanos , Bioética , Medicina Legal , Relações Médico-Paciente , Previdência SocialRESUMO
A avaliação da capacidade laborativa dos segurados da Previdência Social que solicitam benefício por incapacidade, o auxílio-doença, é atribuição da Perícia Médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ter acesso ao benefício implica reconhecimento da existência de doença e de sua repercussão sobre a condição laborativa, na vigência de vínculo legal entre o segurado e a seguradora INSS. Este artigo apresenta resultados de pesquisa qualitativa desenvolvida com um grupo de treze médicos peritos. O trabalho desses peritos foi estudado utilizando-se categorias de análise da ergonomia e de técnicas de entrevistas e de autoconfrontação. O processo de decisão pericial foi estudado tomando-se como referência a noção de julgamento oriunda do Direito, tendo como marco teórico a Hermenêutica Jurídica, de Ronald Dworkin. Foram evidenciados conflitos na atividade médico-pericial, derivados da contraposição da demanda dos segurados com o ordenamento normativo da Previdência. Os resultados obtidos permitem afirmar que a avaliação pericial pressupõe a constituição de um código interpretativo constituído de princípios ordenadores de julgamento. Essa matriz interpretativa depende da forma peculiar de atuação e inserção social do profissional. Sendo assim, a decisão (ou julgamento) não pode ser pensada independentemente das influências políticas de uma prática social.